domingo, 23 de janeiro de 2011

Bem-aventurados os pobres de espírito

Por que algumas pessoas podem querer abandonar resoluções de Ano Novo, o mais rapidamente possível.


Por Mark Galli* em 6 de janeiro de 2011


Sob o risco de estragar os votos sofridos de Ano Novo de alguém, quero sugerir que alguns de nós desistam de se tornar bons cristãos, ou qualquer coisa nobre que estejamos tentando ser.

Eu sei que o Novo Testamento está repleto de admoestações para que você se “empenhe” e “faça grande esforço” para ser um discípulo fiel de Jesus. Uma das expressões favoritas de Paulo nestas linhas é uma metáfora do ato de se vestir: “se vestir do novo” (Col. 3:10), “se revestir do Senhor Jesus Cristo” (Rom. 13:14), e “se vestir de toda armadura de Deus” (Ef. 6:11), para citar algumas passagens em que ele usa esta expressão. Ele também relaciona esta metáfora às virtudes:
Nós temos que vestir "a couraça da justiça" (Ef. 6:14), "revestir o coração de... compaixão, bondade, mansidão, humildade e paciência" (Col. 3:12), e acima de tudo temos que "nos revestir de amor"(Col. 3:14).

O que Paulo não explica é como exatamente alguém pode “se vestir” destas virtudes. A resposta é mais misteriosa do que poderíamos pensar.


Durante um culto de oração na noite de Ano Novo, um amigo meu descreveu sua caminhada espiritual no ano que se passou. Ele lamentou que seus planos de se tornar mais regular e disciplinado em oração e estudo da Bíblia não tivessem chegado a lugar nenhum. Ainda assim, ele disse que achava que tinha crescido mais que nunca espiritualmente.


É exatamente assim que a vida espiritual funciona para mim. Quanto mais eu me esforço para ser um “bom cristão” – orando mais, sendo mais paciente, generoso e por aí vai – mais eu me acho ansioso, irritado, culpado, ressentido e hipócrita. Quando eu simplesmente aceito que sou um pecador, realmente, acho que oro mais, sou mais paciente, mais generoso, mais humilde e amo mais.


Esta é a realidade paradoxal que tem sido explorada pelos Alcoólicos Anônimos com eficácia há décadas. Quanto mais uma alcoólatra tenta controlar seu vício, mais ela está propensa a beber. Mas, no momento que ela admite que não tem controle sobre o álcool, aí sim pode ganhar alguma liberdade – enquanto ela continua a se identificar assim: “Oi, eu sou Ana, e sou uma alcoólatra.”


Somos constantemente tentados – pelo menos eu sou tentado assim – a controlar nossos anseios pelo pecado e a nos empenharmos para ser o que não somos: santos. Sim, eu entendo que em Cristo podemos de fato ser chamados assim. Alguns dizem que isto se relaciona ao que é imputado a nós – agora somos tratados por Deus como se fossemos justos, estamos justificados. Outros enfatizam a esperança: recebemos a promessa de um Deus fiel de que no fim Cristo nos transformará. De qualquer forma, pensando sobre isso teologicamente, continua sendo um paradoxo que muitos não façam nenhum progresso espiritual até que entendam a si mesmo por seu fracasso: “Oi, sou Marcos, e sou um pecador.”


Jesus coloca isso desta forma: “Bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o Reino dos Céus.”


Em termos práticos, isso significa desistir de qualquer esforço para fazer de si mesmo alguma coisa (o que se relaciona perfeitamente com o fato de que Deus é quem fez todo o necessário para fazer algo de nós – voltamos a isso mais uma vez). Isto quer dizer, por sua vez, que pode ser interessante abandonar resoluções para se tornar melhor nisso ou naquilo.


É compreensível o medo de alguns: “Eu mal consigo viver uma vida decente tentando. Se eu desistir, não vou cair num lamaçal de imoralidade?” Ou “Se eu não tenho alcançado muitos objetivos, não vou então estagnar?”


É sempre uma possibilidade, claro. Nós seres humanos temos uma mania de transformar verdades profundas em justificativas para todo tipo de comportamento. Mas então temos pessoas como Jesus nos dizendo que o caminho do Reino dos Céus – a vida completamente realizada em Deus – passa pela estrada da pobreza espiritual.


Acrescente a isto a experiência de muitos: que somente abandonando o esforço moral puderam realmente fazer algum progresso em suas vidas. Isto tem a ver de certa forma, novamente, com a perversidade da natureza humana, que instintivamente se rebela contra qualquer autoridade externa, até a ética autoridade de Jesus! Enquanto parte de nós anseia por viver moralmente (isto é, frutificando, amando), outra parte de nós sabota o desejo quando tentamos realizá-lo.


Isto também tem a ver com o que capacita as pessoas a fazerem exatamente aquilo que não conseguem quando se esforçam: a liberdade. Você não pode desfrutar da liberdade se sente que tem que fazer isso e aquilo para ser bom. Isso não é liberdade, é opressão. Somente quando você perceber que não tem que fazer ou ser alguma coisa, poderá conhecer a liberdade, e só quando conhecer a liberdade poderá realmente escolher o que é bom.


Por meio de Cristo, Deus nos diz que não temos mais que fazer ou ser alguma coisa. Porque Deus amou o mundo. Somos o objeto do favor de Deus exatamente como somos. Não podemos acrescentar nada a esta realidade nem tirar disto alguma coisa. De nada vale tentar fazer ou ser alguma coisa, a não ser um pecador. (Uma razão libertadora para isso é que já somos muito bons nisso!)


O que acontece, no entanto, quando vivemos como se fossemos fracassos morais, quando nos recusamos a ser ansiosos e culpados e andar envergonhados por nosso comportamento, e simplesmente reconhecemos quão pobres espiritualmente nós somos? Para muitos, funciona assim: Pela primeira vez são capazes de fazer uma pergunta simples, mas crucial: “O que eu quero fazer?” Fazer o bem ou evitar o mal não muda nada no universo, e certamente nada no nosso relacionamento com Deus. Esta discussão está fora de questão. Nós somos amados quando fazemos o certo ou não. Somos amados quando pecamos ou não. A única coisa que pode determinar nosso comportamento é “O que eu quero?” “Como eu quero viver?” “Que tipo de pessoa quero ser?”


Modificando o que disse o filósofo Agostinho, uma vez que nos encontramos em estado de amor transcendente – conhecendo o amor de Deus e cheios de gratidão em retorno – realmente podemos fazer o quisermos. E a grande surpresa é essa: exatamente aquilo que temos nos esforçado para ser, aquilo que nos sentimos pressionados a fazer ou a ser, é agora o objeto do nosso desejo. Não porque temos que fazer para atender a um padrão religioso, ser um bom cristão, nos aceitarmos, sermos úteis para a humanidade, ou justificar nossa existência. Não, quando realmente tivermos a liberdade de fazer o que queremos, vamos descobrir que queremos fazer e ser o que o Deus de amor quer que façamos e sejamos. Resumindo, o Reino de Deus será nosso!

Isto não quer dizer que magicamente estaremos aptos a fazer o que queremos com facilidade, que não falharemos, e não teremos que ser conscientes e cautelosos em nossos esforços para seguir a Cristo. Dificilmente. Quando Paulo diz que temos que “trabalhar” na nossa salvação, significa isto mesmo. A mente e a vontade foram criadas por Deus para que estivessem ligadas. Deus não quer robôs passivos, mas amantes dinâmicos. Eu estou simplesmente sugerindo o que muitos teólogos e diretores espirituais tem em mente quando dizem que nossos esforços morais precisam estar fundamentados na liberdade e motivados por amor. Parece um clichê espiritual, mas é uma realidade psicológica e espiritual, de fato.

Isto, é claro, uma das dimensões do modo como Deus nos transforma. Como diz o velho ditado, Deus nos ama assim como estamos, mas nos ama demais para nos deixar assim. O infinito amor de Deus trabalha de diversas formas. Para ser justo, alguns realmente crescem fazendo resoluções, estabelecendo metas e se esforçando ao máximo. Mas aceitar a própria pobreza espiritual e relaxar na graça tem sido uma das maneiras mais frutificadoras para muitos outros.


Então como podemos entender a noção de Paulo de “vestir” estas várias virtudes à luz desta realidade? Eu não creio que ele nos exorta a um esforço sob pressão – que seria a maneira da lei, justamente a qual ele consistentemente condena. Vejo isto assim: Estou numa loja de roupas, olhando uma arara de casacos esportivos. Então vem um vendedor que diz: “Por que não veste este azul?” Ele tira o casaco do cabide e segura aberto para mim, para colocar meus braços nas mangas. Logo, ajeita nos meus ombros, abotoa na frente, alisa e me diz para olhar no espelho. Eu estou vestido com o casaco, mas na verdade, o vendedor o vestiu em mim. Trabalhe na sua salvação, diz Paulo, acrescentando ainda: “Porque é Deus quem opera em vós tanto o querer como o efetuar, segundo a sua boa vontade.”


O Vendedor se aproxima de nós todo dia: “Por que você não se reveste de amor?”, ele diz. “Aqui, deixa eu pegar para você. Só levanta os braços.”


*


Mark Galli é editor sênior da revista Christianity Today (Cristianismo Hoje) e autor de diversos livros sobre a graça de Deus.

Constantino e a Institucionalização da Igreja

Por Neil Cole* em 29 de Novembro de 2010

Recentemente, minha esposa e eu passamos alguns dias em York, na Inglaterra. Lá vimos uma estátua de Constantino erguida bem ao lado da principal catedral da área – a York Minster. Apesar de sua impressionante beleza, a catedral nos lembrou como as pessoas afastaram a igreja do propósito original.

A Igreja primitiva era orgânica e um movimento em suas primeiras centenas de anos. Mesmo levada à clandestinidade por ondas de perseguição romana, ela continuou como um movimento viral que não podia ser contido ou parado. Ainda que muitos tenham tentado destruí-la, cada tentativa a tornava ainda mais forte.

No entanto, tudo isso mudou em 313 d.C., quando o imperador Constantino declarou que o império não apenas toleraria o Cristianismo, mas restituiria à igreja todos os seus bens confiscados. Ele foi o primeiro imperador “cristão” e o Cristianismo, antes marginal, se tornou a religião do Estado, uma mudança radical. Desde então, contudo, a igreja não mudou. Nosso inimigo, o próprio Diabo, aprendeu que se não podia parar a igreja, deveria se juntar a ela e transformá-la de dentro para fora de maneira que ela fosse ineficaz e não mais ameaçadora. Com exceção de avivamentos eventuais em grupos remanescentes, pode-se dizer que ele conseguiu. E ele usou Constantino para começar este ataque maligno.

Ao longo dos séculos, depois de Constantino, a Igreja ocidental progrediu em muitos aspectos, mas nenhum representa uma mudança significativamente sistêmica. Por centenas de anos, houve poucas transformações desde o estabelecimento da Igreja Católica Romana e da Igreja Grega Ortodoxa. A Reforma dividiu a Igreja ocidental em Igreja Católica Romana e a volátil Igreja Protestante. Mas, apesar das diferenças, no âmbito institucional o sistema permaneceu praticamente intacto. Os anabatistas se separam da reforma (e foram perseguidos por ela), mas logo iriam se institucionalizar também.

Apesar das adaptações feitas para alcançar os mineradores de carvão na Inglaterra do século XVIII ou os peregrinos pós-modernos do século XXI, as mudanças são mínimas. Tradicional ou contemporânea, Pentecostal ou Presbiteriana, a igreja permanece institucional em sua abordagem. Dos batistas aos Irmãos de Plymouth, dos menonitas aos metodistas, as mudanças no sistema são praticamente insignificantes ao longo dos séculos. Com música ou sem? Órgão ou guitarra? Em catedrais com tetos altos e vitrais ou em encontros num galpão sem janelas, o atual sistema da igreja continua o mesmo.

Você tem um padre ou pastor, o culto de domingo com músicas e um sermão, a oferta semanal, o púlpito, os bancos, um edifício. Tem sido assim desde o século IV. E mesmo se você mover todo o show de um prédio para uma casa, se o sistema não mudou, o que você fez foi apenas encolher a Igreja, não transformá-la. Mudar o estilo de música não melhora o sistema. Apagar as luzes e aumentar o volume é um simples remendo no mesmo velho sistema. Corais e hinos ou bandas de louvor e máquina de fumaça, de joelhos ou de pé, o sistema muda muito pouco. Pregar mensagens tópicas ou expositivas não é mudar o sistema, trata-se apenas de mínimos ajustes. Escolas bíblicas dominicais ou células como ambientes secundários de aprendizado não representam nenhuma mudança sistêmica, só uma variação do mesmo velho sistema operacional.

Constantino foi declarado césar enquanto estava em York em 306 d.C. Hoje, próximo ao local onde ele foi nomeado imperador está uma estátua sua ao lado de uma grande catedral, o que acho tremendamente simbólico. Constantino transformou a Igreja numa instituição e ela permanece neste estado por 1700 anos. Hoje, há uma homenagem a ele perto de um monumento institucional que expressa exatamente o que a igreja é – a York Minster Cathedral. Hoje nós estamos testemunhando uma rápida transição de volta a uma expressão orgânica e viral de eclesiologia.

Devemos lembrar de Constantino para não cometer o mesmo erro. Precisamos acordar, mais uma vez, para a verdadeira natureza e expressão do corpo de Cristo, que não é um prédio, um programa, um evento ou uma organização, mas é sim uma família espiritual com um chamado e uma missão a ser cumprida em conjunto. Precisamos, mais uma vez, perceber que a forma da Igreja não é o problema, mas a maneira como nos relacionamos - com Deus, uns com os outros e com o mundo.

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Neil Cole é editor do blog Cole Slaw e idealizador da Associação para Multplicação de Igrejas (Church Multiplication Associates - CMA), uma rede informal de comunidade em busca de uma expressão orgânica de Igreja, isto é, com um foco em pessoas e não em programas, em virtude da frustração com o sistema institucional. Neil é autor de vários livros, como Igreja Orgânica e Church 3.0.